A lenda de Jusef Sardu

       Uma bubbeh meiseh, ―uma história de vovó. Um conto de fadas. Uma lenda. 


Era uma vez... um gigante.

 Ele era filho de um nobre polonês e se chamava Jusef Sardu. Era mais alto do que qualquer outro homem. Mais alto do que qualquer telhado na aldeia. Precisava se curvar muito para entrar em qualquer porta, mas essa altura toda era um fardo. Uma doença de infância, não uma bênção. O rapaz sofria. Seus músculos não tinham força para sustentar aqueles ossos compridos e pesados. Às vezes, até caminhar era uma verdadeira luta. Como bengala, Sardu usava um cajado comprido, mais alto do que você, com o punho de prata esculpido com o formato de uma cabeça de lobo, que era o brasão da família. 
       Sardu encarava aquilo como seu destino na vida, e aprendeu a ser humilde, coisa que poucos nobres conseguem. Tinha muita compaixão pelos pobres, trabalhadores e doentes. Era especialmente querido pelas crianças da aldeia. Grandes e profundos feito sacos de nabos, seus bolsos viviam cheios de doces e brinquedos. Ele mesmo não tivera infância, pois igualara a altura do pai aos oito anos, e já aos nove era uma cabeça mais alto. Sua fragilidade e seu enorme tamanho eram uma fonte secreta de vergonha para o pai. Mas Sardu era um gigante gentil e adorado pelo seu povo. Diziam que ele olhava para todos lá de cima, mas sem rebaixar ninguém.
       Ele também era um amante da natureza, e não nutria interesse pela brutalidade da caça... mas, como nobre e homem de posição, aos quinze anos foi levado pelo pai e pelo tio numa expedição de seis semanas à Romênia.
       Na região do norte, kaddishel. Nas florestas escuras. Os homens do clã Sardu não foram caçar porcos selvagens ou alces. Foram caçar lobos, o símbolo da família, o brasão da Casa de Sardu. Eles caçavam um animal predador. As lendas da família Sardu diziam que comer carne de lobo dava a seus homens coragem e força. O pai do gigante gentil acreditava que isso poderia curar os músculos fracos do filho.
   
 A jornada foi longa e árdua, além de muito prejudicada pelas más condições do tempo. Jusef lutava bravamente. Nunca viajara para lugar algum fora da aldeia e ficava envergonhado com os olhares que recebia de desconhecidos ao longo do caminho. Quando chegaram à floresta escura, a mata parecia viva em torno dele. Durante a noite, matilhas de animais percorriam a floresta, quase como refugiados deslocados de seus abrigos, ninhos e covis. Eram tantos animais que os caçadores não conseguiam dormir no acampamento. Alguns queriam partir, mas a obsessão do velho Sardu estava acima de tudo. Os lobos podiam ser ouvidos, uivando à noite, e ele queria muito um lobo para seu filho, aquele filho único cujo gigantismo manchava a estirpe Sardu. Era preciso livrar a casa de Sardu daquela maldição, casar seu filho e produzir muitos herdeiros sadios.
      Acontece que, ao perseguir um lobo, o pai de Jusef foi o primeiro a ficar separado dos outros, pouco antes de anoitecer no segundo dia. O pessoal passou a noite esperando por ele, e depois do alvorecer todos se espalharam para começar a busca. Acontece que à noite um dos primos de Jusef não voltou. E assim por diante, entende?

Até que o único que restou foi Jusef, o menino gigante. No dia seguinte ele partiu e, numa área já vasculhada, descobriu os corpos do pai, dos tios e dos primos jogados na entrada de uma caverna subterrânea. Os crânios haviam sido esmagados com grande violência, mas os corpos não haviam sido devorados, coisa que levou Jusef a supor que eles haviam sido mortos por uma fera de força tremenda, mas não por fome ou medo. O motivo ele não conseguia imaginar, 
embora se sentisse vigiado, talvez até mesmo estudado, por algum ser à espreita dentro da caverna escura.
     O menino Sardu carregou cada corpo para fora da caverna e enterrou todos profundamente. É claro que ficou severamente enfraquecido por esse esforço, que lhe roubou a maior parte das forças. Ele ficou esgotado, farmutshet. Mesmo sozinho, amedrontado e exausto, à noite retornou à caverna, para enfrentar o mal que se revelava depois do escurecer, vingar seus antepassados ou morrer tentando. Nós só sabemos disso devido a um diário que ele mantinha, e que foi descoberto na mata muitos anos depois. Essa era a última anotação.
     Ninguém sabe ao certo o que aconteceu. Lá na casa do clã, as tais seis semanas viraram oito, e depois dez. Sem notícias, temia-se que todos os caçadores houvessem se perdido. Foi formada uma equipe de busca, que nada descobriu. Então, durante a décima primeira semana, certa noite chegou uma carruagem de cortinas fechadas. Era o jovem senhor. Ele se fechou sozinho dentro do castelo, numa ala só com dormitórios vazios, e raramente, se é que alguma vez, foi visto novamente. Na época, só boatos davam conta do que lhe acontecera na floresta da Romênia.
     Os poucos que alegavam ver Sardu... caso fosse realmente possível acreditar nesses relatos... insistiam que ele se curara das enfermidades. Alguns até mesmo murmuravam que ele retornara possuidor de uma força enorme, compatível com seu tamanho sobre-humano. Contudo, era tão profundo seu luto pelo pai, pelos tios e primos, que ele nunca mais foi visto durante as horas de trabalho, e dispensou a maioria dos empregados. Havia movimento no castelo à noite, pois via-se o clarão das lareiras brilhando nas janelas, mas com o tempo a propriedade dos Sardu foi caindo no abandono.
     Mas, então, à noite... alguns alegavam ouvir o gigante caminhando pela aldeia. A criançada, principalmente, contava que ouvia o toque-toque-toque da bengala dele. Sardu não usava mais aquilo para se apoiar, e sim para tirar as crianças da cama, oferecendo-lhes brinquedos e guloseimas. Os descrentes eram levados para ver os buracos no solo, alguns embaixo das janelas dos quartos: eram pequenos orifícios redondos, como se fossem feitos pela bengala com cabo de cabeça de lobo.‖ 

     Então, alguns filhos de camponeses começaram a desaparecer. Corriam histórias sobre o sumiço de crianças também nas aldeias próximas. Até mesmo na minha própria aldeia. É, quando menina, eu morava apenas a meio dia de caminhada do castelo de Sardu. Eu me lembro de duas irmãs. Seus corpos foram encontrados numa clareira no bosque, tão brancos quanto a neve ao redor, com os olhos abertos vidrados pela geada. Eu própria ouvi certa noite, não muito distante, o toque-toque-toque daquela bengala. Era um barulho tão forte e ritmado que puxei meu cobertor depressa sobre a cabeça para me isolar. Depois passei muitos dias sem conseguir dormir.
     Grande parte da aldeia de Sardu acabou abandonada e virou um lugar amaldiçoado. Quando a caravana dos ciganos passava pela nossa aldeia vendendo artefatos exóticos, eles nos falavam de acontecimentos estranhos, assombrações e aparições perto do castelo. De um gigante que percorria a terra enluarada feito um deus da noite. Eram eles que nos alertavam: ―Comam e fiquem fortes... ou Sardu virá pegar vocês.‖

Coma e fique forte. Se não, ele virá. Sardu virá. Toque-toque-toque.

Postador por: Unknown

domingo, 28 de setembro de 2014 - 0 Comentário:
 

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